quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Dia de Trabalho



Como acontecia todas as manhãs, Abílio acordou com o cheiro de café fresco que exalava pela casa. Espantando o sono dos olhos com esfregadas firmes, levantou-se soltando um pequeno resmungo, pois gostava de dormir até tarde aos domingos. Mas hoje ele tinha que trabalhar, então...
Alguns minutos depois, já arrumado, barba feita e com sua “capanga” em mãos ele entrou na pequena cozinha da casa e deparou-se com o pratinho florido cheio de beju com coco, que Clarinha sempre fazia do jeito que ele gostava. E sua caneca rubro-negra fumegava ao lado, cheia até a borda de café com leite.
Clarinha, linda e bem disposta como sempre, parou de soprar o café fumegante da própria xícara para saudar com um sorriso o marido que chegava.
E que sorriso!
Como sempre, ele esqueceu imediatamente o mau humor de poucos minutos atrás.
O sorriso de Clarinha tinha esse efeito sobre ele.
Já passando dos 40, Abílio se achava o homem mais sortudo do mundo, pois tinha casado com uma garota com metade da idade dele. Uma menina com corpo de mulher, cobiçada por todos os homens da rua e isso não era segredo pra ninguém. Mas Abílio também sabia que nenhum deles era idiota o suficiente pra tentar uma cantada, um gracejo... Eles apenas se limitavam a olhar o traseiro empinado e rebolativo de Clarinha, desde que Abílio não estivesse olhando, claro! Ora, veja!!!
Enquanto bebericava o café, Abílio espiou com o canto do olho Clarinha se levantar para buscar a margarina. Recostando-se na cadeira, ele ficou se deliciando com a visão da esposa inclinando-se para pegar o recipiente de plástico na parte mais baixa da geladeira. Aquilo era como um ritual. Depois de pegar a bendita margarina, ela se levantava com um sorriso malicioso, já antevendo o olhar pidão de Abílio passeando pelo seu corpo. E aquilo o remoçava 20 anos!!!
Durante o café, Clarinha sempre ouvia no rádio o programa de Pablo Azevêdo, o radialista mais meloso e apaixonado do Estado do Pará. Abílio preferia ouvir o noticiário, pois sempre podia ouvir alguma opinião sobre seu último trabalho. Mas ele gostava de ver Clarinha feliz, então não se importava em perder as notícias.
Depois de deixar sobre a mesa algumas notas de 100 pra Clarinha pagar a luz e a água e fazer mercearia pra semana (sem esquecer a goiabada, doce que Abílio gostava muito), ele pegou a chave da Caravan no chaveiro feito de azulejo que ele trouxe de lembrança do Maranhão, abriu a porta e saiu.
Antes de entrar no carro deu um beijo de despedida em Clarinha, aproveitando pra dar uns tapinhas nas nádegas da esposa, coisa que ele gostava muito de fazer sempre que tinha oportunidade e que ela adorava, aquela safadinha!!!
Uma última conferida nos retrovisores enquanto Clarinha escancarava o pequeno portão desgastado pelo tempo. Abílio precisava lembrar de comprar a tinta pra retocar a cor do portão, coisa que tinha prometida a Clarinha desde o Ano Novo mas nunca tinha cumprido.
Antes de ligar o carro, apalpou de leve a “capanga” antes de escondê-la debaixo do banco do carona. Era outro ritual que Abílio tinha, assim como o de se recostar e ver Clarinha pegar a margarina na geladeira. De alguma forma meio estranha, ele sempre associava as formas da arma dentro da pequena bolsa com as curvas de sua jovem esposa.
E aquilo também o remoçava 20 anos!!!
Abílio tirou o Ray-Ban do porta-luvas e limpou na manga da camisa quadriculada. Deu uma última olhada na foto do vereador que ele foi pago pra matar na cidade vizinha, ligou o carro e saiu, deixando para trás o sorriso encantador de Clarinha.


Pequena fera



Pequena fera
Que ao sono se entrega
Qual alegria ou tristeza,
Dor ou prazer te espera?
Indiferente aos afagos
Que tua mãe te dera,
Quando libertarás a besta
Que ruge, que mata
Que persevera?

Liberdade Perdida



Durante toda sua vida o rapaz só conheceu a escravidão.
Sob o peso da canga e as dores do chicote, ele atravessou rios, campos e planícies, sempre puxando, junto com seus irmãos de infortúnio, uma grande e desconhecida efígie.
Sempre olhando para baixo, sem nunca encarar seus algozes, o rapaz não se importava com árvores, rochas ou animais, mesmo quando se tornavam obstáculos na longa e penosa caminhada, pois todos eram contornados no estalar do chicote.
Durante os curtos períodos de descanso, enquanto comia a insossa comida que lhes era dada, ele nunca ouvira falar que um grilhão havia se partido. Assim ele ignorava o significado de liberdade.
De sol a sol, caminhando e sofrendo, ele não tinha desejos.
Nem sonhos.
Nem esperança.
Mas um dia, enquanto olhava costumeiramente a vida passar nos grãos de areia sob seus pés, percebeu uma sombra que não conhecia.
Era grande e majestosa, com asas largas e um bico firme. E mesmo correndo o risco de ser açoitado, ele ergueu o rosto e viu uma grande águia cortando o céu.
E ele desejou ser aquele grande pássaro.
Sonhou com as nuvens e sentiu um pontada de esperança de um dia ser livre, mesmo não sabendo exatamente o que era aquilo.
Então ele ouviu um grilhão se partir em sua canga.
O verdugo mais próximo já erguia seu chicote de cinco pontas pronto para desferir uma sequência de golpes quando a grande águia atravessou velozmente seu caminho, em direção ao peito desnudo do rapaz recém-liberto.
Mas, para o espanto dele e de todos que acompanhavam atônitos a cena, a ave atravessou seu peito, sumindo no interior de seu corpo, enquanto uma aura incandescente o envolvia .
Aos poucos sua forma alterou-se, transformando-o em uma criatura meio-homem, meio-águia, ainda maior e mais majestosa que a ave anterior.
Com um poderoso rufar de asas que deslocou grandes massas de vento e areia, o rapaz-águia ganhou os céus, deixando para trás chicotes e correntes, algozes e escravos.
Sem nada ou ninguém que interferisse em seu caminho, atravessando nuvens e desfiladeiros, sobrevoando planaltos e planícies, ele voou durante dias seguidos, não se atrevendo a pousar em lugar nenhum, por medo que isso o levasse de volta a escravidão do solo.
Ele já se julgava o senhor absoluto dos céus, quando avistou com seu olhar apurado um pequeno pássaro que voava distraidamente.
Lançando-se como uma flecha, o rapaz-águia atingiu o dorso do passarinho com suas unhas afiadas. Mortalmente ferido, a pequena ave despencou em direção ao solo, piando chorosamente.
Soltando um guincho alto e agudo, o rapaz-águia voltou a sentir-se o soberano de todo o céu.
Mas algo aconteceu.
Mesmo batendo energicamente suas possantes asas, a criatura começou a perder altitude, precipitando-se em direção ao odiado solo.
Ricocheteando nas pedras de um precipício, a criatura estatelou-se na areia, reassumindo de imeadiato sua antiga forma humana.
Enquanto o rapaz se debatia, a águia começou a brotar de suas costas, até livrar-se por completo daquela malfadada miscigenação.
Tossindo e arfando e com um fio de sangue escorrendo do canto da boca, o rapaz levantou-se penosamente a tempo de ver a grande ave levantar voou, deixando-o sozinho com suas dores.
Ele então desejou novamente voltar aos céus, mas seu olhar foi desviado para pequenas e conhecidas formas que cambaleavam no horizonte, puxando uma enorme efígie.
Desde esse dia, caminhando e sofrendo, ele não teve mais sonhos.
Nem desejos.
Nem esperança.

O início...


Idéias para novos roteiros não me faltam, mas como meu tempo fica cada vez mais escasso devido ao trabalho com os comics, fica impossível transformar tantas idéias em quadrinhos. Ciente disso, e não satisfeito em apenas desenhar, decidi postar essas idéias em forma de contos aqui neste blog. Espero que com essa iniciativa eu consiga alcançar um dos meus objetivos que é estimular a leitura. Ainda um novato nessa área, peço que desculpem qualquer erro, que tentarei não mais cometer nos próximos textos. Opinem, critiquem, elogiem... enfim, fiquem a vontade para deixar aqui seus comentários. Boa leitura!