Como acontecia todas as manhãs, Abílio acordou com o cheiro de café
fresco que exalava pela casa. Espantando o sono dos olhos com esfregadas firmes,
levantou-se soltando um pequeno resmungo, pois gostava de dormir até tarde aos
domingos. Mas hoje ele tinha que trabalhar, então...
Alguns minutos depois, já arrumado, barba feita e com sua “capanga” em
mãos ele entrou na pequena cozinha da casa e deparou-se com o pratinho florido
cheio de beju com coco, que Clarinha sempre fazia do jeito que ele gostava. E
sua caneca rubro-negra fumegava ao lado, cheia até a borda de café com leite.
Clarinha, linda e bem disposta como sempre, parou de soprar o café
fumegante da própria xícara para saudar com um sorriso o marido que chegava.
E que sorriso!
Como sempre, ele esqueceu imediatamente o mau humor de poucos minutos
atrás.
O sorriso de Clarinha tinha esse efeito sobre ele.
Já passando dos 40, Abílio se achava o homem mais sortudo do mundo, pois
tinha casado com uma garota com metade da idade dele. Uma menina com corpo de
mulher, cobiçada por todos os homens da rua e isso não era segredo pra ninguém.
Mas Abílio também sabia que nenhum deles era idiota o suficiente pra tentar uma
cantada, um gracejo... Eles apenas se limitavam a olhar o traseiro empinado e rebolativo
de Clarinha, desde que Abílio não estivesse olhando, claro! Ora, veja!!!
Enquanto bebericava o café, Abílio espiou com o canto do olho Clarinha
se levantar para buscar a margarina. Recostando-se na cadeira, ele ficou se
deliciando com a visão da esposa inclinando-se para pegar o recipiente de
plástico na parte mais baixa da geladeira. Aquilo era como um ritual. Depois de
pegar a bendita margarina, ela se levantava com um sorriso malicioso, já
antevendo o olhar pidão de Abílio passeando pelo seu corpo. E aquilo o remoçava
20 anos!!!
Durante o café, Clarinha sempre ouvia no rádio o programa de Pablo
Azevêdo, o radialista mais meloso e apaixonado do Estado do Pará. Abílio preferia
ouvir o noticiário, pois sempre podia ouvir alguma opinião sobre seu último
trabalho. Mas ele gostava de ver Clarinha feliz, então não se importava em
perder as notícias.
Depois de deixar sobre a mesa algumas notas de 100 pra Clarinha pagar a
luz e a água e fazer mercearia pra semana (sem esquecer a goiabada, doce que
Abílio gostava muito), ele pegou a chave da Caravan no chaveiro feito de
azulejo que ele trouxe de lembrança do Maranhão, abriu a porta e saiu.
Antes de entrar no carro deu um beijo de despedida em Clarinha,
aproveitando pra dar uns tapinhas nas nádegas da esposa, coisa que ele gostava
muito de fazer sempre que tinha oportunidade e que ela adorava, aquela
safadinha!!!
Uma última conferida nos retrovisores enquanto Clarinha escancarava o
pequeno portão desgastado pelo tempo. Abílio precisava lembrar de comprar a
tinta pra retocar a cor do portão, coisa que tinha prometida a Clarinha desde o
Ano Novo mas nunca tinha cumprido.
Antes de ligar o carro, apalpou de leve a “capanga” antes de escondê-la
debaixo do banco do carona. Era outro ritual que Abílio tinha, assim como o de
se recostar e ver Clarinha pegar a margarina na geladeira. De alguma forma meio
estranha, ele sempre associava as formas da arma dentro da pequena bolsa com as
curvas de sua jovem esposa.
E aquilo também o remoçava 20 anos!!!
Abílio tirou o Ray-Ban do porta-luvas e limpou na manga da camisa quadriculada.
Deu uma última olhada na foto do vereador que ele foi pago pra matar na cidade
vizinha, ligou o carro e saiu, deixando para trás o sorriso encantador de
Clarinha.
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